31 de janeiro de 2020

Querida Mia

Gênero: "Fantasia"
Este é um pequeno conto escrito em homenagem à uma grande ilustradora e admirável pessoa. É uma forma de mostrar como o mundo real pode ser tão mágico quanto quisermos. E também é a história de uma garotinha chamada Mia.



Essa é a história de uma garotinha chamada Mia. Aos 4 anos de idade, Mia adorava desenhar e colorir, e como toda criança ela tinha um excesso de criatividade. Por isso não era incomum que ela tivesse também amigos imaginários. Mas Mia não tinha um ou dois amigos, ela tinha dezenas de amigos. A cada novo desenho que ela mostrava à sua mãe, era um novo amigo: Gongo, roxo com listras amarelas, ou Blásio, com suas orelhas felpudas e macacão azul. Mia tinha desenhos de todos os seus amigos, e era uma criança muito feliz. Sua mãe sempre a incentivava e deixava sua imaginação correr livre, por isso ela passava horas e horas com seus lápis de cor e suas canetinhas.
Mia cresceu um pouco, e sua mãe via que sua garotinha tinha talento. Para incentivá-la, a colocava em diversos cursos, mas por mais maravilhados que os professores ficassem com os desenhos dela, ela não durava muito, pois se desinteressava nas regras e técnicas dos professores. Porém todos estes cursos serviram para que ela acabasse com um monte de materiais, e isso ela adorava. Até o dia em que ela conheceu a pintura digital. “Materiais infinitos” disse ela para sua mãe, com os olhos brilhando. E dia e noite ela ficava naquele velho computador, até conseguir desenhar na tela da mesma forma que desenhava no papel.
Só que a jovem Mia não gostava apenas de ilustrações, ela gostava de mundos fantásticos, fantasia, magia. Adorava contos de fadas e também inventava os seus próprios, onde os vilões nem sempre eram tão malvados, e os heróis as vezes eram uns bobões. E foi numa noite, olhando no espelho e se sentindo sem graça, que ela viu uma de suas muitas aquarelas jogadas por ali. Ela imaginou como a roupa daquela viajante que criara era bonita, e como gostaria de ter uma roupa igual àquela. Foi por isso que no dia seguinte ela decidiu sair procurando em várias lojas uma roupa que fosse parecida, ou pelo menos lhe dessa uma sensação tão boa quanto aqueles contos a faziam se sentir. E ela não encontrou nada que pudesse comprar com sua mesada, não. Contudo, na volta para casa, passando em frente à uma portinha escondida e uma vitrine suja, ela decidiu parar. Parecia ser uma loja, ela não sabia dizer ao certo, e havia várias roupas diferentes lá. Ao entrar, um cheiro forte entrou em suas narinas e a fez espirrar, chamando a atenção da vendedora:
- Saúde! – disse a moça atrás do balcão.
- O-obrigada – respondeu Mia.
- Ora, ora, que bela jovem temos aqui! O que você procura, querida?
- Eu estava passando ali na frente e vi umas roupas tão bonitas...
- Pois fique à vontade, querida. Estamos para fechar as portas, infelizmente, então tudo está bem baratinho – disse a mulher de meia idade, com um sorriso triste.
Mia olhou e olhou, e quanto mais perguntava os preços mais surpresa ficava. Ela descobriu que roupas usadas custam muito mais barato do que roupas novas, especialmente aquelas que são consideradas “fora de moda”. Ela precisou de duas grandes sacolas para carregar de volta tudo o que havia comprado, porém ao chegar em casa ela percebeu que nenhuma das roupas combinavam muito entre si.
- Mãe, o que eu faço agora? Nenhuma delas combina – perguntou à sua mãe, que observava da porta do quarto enquanto tomava uma xícara de café.
- Por que você não faz umas adaptações?
- Como assim, mãe?
- Vamos colocar essas roupas todas pra lavar, enquanto isso me ajuda a pegar minha antiga máquina de costura que eu vou te explicando.
Assim como Mia conseguia criar em seus desenhos, ela agora criava com as roupas. E a mesma roupa de sua ilustração foi a primeira que ela fez. Um pouco torta, não estava totalmente como ela havia imaginado, mas lá estava o vestido amarelo com as bordas de um tutu, um casaco verde escuro e um xale creme que mais parecia um cachecol, que combinavam com sua bota longa de camurça marrom. Ela mal podia esperar para usar. E foi naquela mesma noite.
Ela caminhava por um campo tranquila, carregando sua maleta. Era um ótimo dia, o clima estava bom, o cheiro das flores no campo a deixavam feliz, tão feliz a ponto de andar saltitando. Mas algo a incomodava, sua maleta parecia estar chacoalhando, e um zumbido vinha de lá de dentro. Ao abrir a maleta, algo saiu voando rapidamente de lá de dentro e foi para o meio do mato. Uma luz brilhante, “talvez fosse um vaga-lume” – ela pensou.
Seguindo mais a frente, escondido por algumas árvores, Mia notou que havia um lago. Ela se aproximou da beirada do barranco atrás da árvore e se debruçou para olhar a água mais de perto, então notou que havia algo de errado. Não era a água, nem o que havia dentro do lago, mas seu reflexo. Seus olhos brilhavam, e seu cabelo estava claro, quase cintilante, em tons que se alternavam com o brilho do sol refletido na água indo de branco à um rosa claro. Seu próprio reflexo então sorriu, e levou o dedo indicador aos lábios, quando ela ouviu uma voz vinda de trás dela:
- Olá, viajante!
Mia se assustou e olhou para trás, apenas para ver uma moça pouco mais velha que ela, com feições delicadas, mais alta e mais magra, com cara de quem havia acabado de acordar. Mia voltou o olhar para o lago, só que agora encarava apenas seu próprio rosto confuso.
- Vai querer peixe de café da manhã? – perguntou a garota misteriosa, se aproximando.
- Não, eu só estava... olhando.
- Ah, então quem sabe umas frutas? Eu não sinto muita fome quando acordo, mas podemos preparar um piquenique, se você quiser – disse a moça, animada.
- Na verdade eu prefiro só...
- Café. Anda, levanta, tá na hora de tomar café pra ir pra escola – disse a mãe de Mia, puxando a coberta para que ela acordasse.
- Mãe! Você sabe que eu odeio quando você faz isso – resmungou Mia. – Eu já tenho vinte anos, sei acordar sozinha para ir pra aula. Só queria mais cinco minutos...
- Cinco minutos é tempo suficiente para você perder o início da prova, você sabe.

- Eu estava tendo um sonho tão bom – disse Mia pegando uma caneca para tomar seu café. – Era sobre...
- Sobre o quê, querida? – perguntou sua mãe oferecendo torradas, que ela recusou.
- Eu... não me lembro.
O fato é que Mia sonhava com pessoas e lugares que nunca havia visto ou visitado, desde que se entendia por gente. Por isso ela nem se surpreendeu quando a caminho da faculdade, no metrô, ela viu sentada do outro lado do vagão uma garota bem semelhante com a do seu sonho. Apenas a achou familiar pois já havia feito uma ilustração de uma moça parecida, e retribuiu o sorriso que ela lhe deu.
Era difícil se concentrar eu suas criações quando ela precisava estudar para provas e atividades inúteis. Ela entendia a importância de fazer uma faculdade, mas não significava que ela gostasse de tudo ali, por mais que ela mesma tivesse escolhido seu curso. A cada dia era mais faculdade e menos Mia, isso a deixava cansada. Seus sonhos eram cada vez mais vívidos; toda a vida que ela não vivia, ela sonhava, e isso era seu ponto de escape.
E a faculdade terminou, e pessoas entraram e saíram de sua vida. Ela era feliz, genuína, pois podia criar não apenas através da arte, ou de como ela se expressava, mas ela também criava laços. Ela se inspirava na realidade, e a realidade se inspirava nela, quando da vez que ela desenhou uma coruja de penas azuis, e a mesma coruja veio a visitar na janela, à noite. Ou poderia ter sido só um sonho, ela estava bem cansada naquele dia.
Além de brechós, ela também frequentava sebos de livros antigos. E quanto mais ela lia sobre mundos fantásticos, mais ela se inspirava em suas criações. Mais vivos eram seus personagens e seus sonhos. O mundo era um lugar mágico, e ela sabia disso. Ela sempre tentava mostrar isso quando desenhava, mas os olhos das pessoas estavam fechados demais pela rotina e pela ganância do mundo moderno.
Foi em uma das decepções que o mundo real lhe proporcionou, que ela entendeu. Aquela pessoa, ontem tão importante, olhava para ela com um sorriso triste, na lua de saturno. Mas se virava em meio os flocos de neve e partia sem olhar pra trás. Era triste, mas também era belo. E foi isso que ela pintou ao acordar e se trancar em seu quarto por horas. Algo tristemente belo, que a fez perceber que a realidade também influencia o mundo fantástico, pois eles se complementam.

- Alô, mãe? – disse Mia, o olhar embaçado através do vidro de uma janela, chuvosa.
- Já chegou no aeroporto, filha? – perguntava a mãe, com a voz falhando na ligação.
- Já sim, embarco em meia hora.
- Pegou sua blusa na mala? Lá pode estar frio.
- Eu não conheço o lugar que vou, mãe. Mas preciso conhecer...
- O mundo, filha. Eu sei. O mundo é seu, minha querida.
- Eu sei mãe. Eu volto logo, tá?
- Faz boa viagem, Mia. Me avisa quando chegar.

Mia andava com seu caderno de rabiscos na bolsa, sempre. Ela podia ser vista sempre por aí desenhando aquilo que via, e chamava a atenção das pessoas. Ela e seus desenhos. Sua realidade melhorada, como costumavam dizer. Ou sua fantasia real, como ela gostava de chamar.
Ela estava sentada em um banco num aeroporto cheio, e desenhava o balcão de uma cafeteria. Os salgados em seu desenho possuíam laços coloridos, e o cheiro de café que saía do lugar eram ondas onde pequenas criaturas surfavam e brincavam. Havia apenas um rapaz de barba, sentado sozinho, cabisbaixo, e ele colocara seus óculos em cima do balcão. Mas ao terminar de desenhar o rapaz, ele não estava mais lá, apenas os óculos. Mia olhou ao redor e não encontrou mais o rapaz, então foi até o balcão e pegou os óculos grandes de lentes redondas. Ela não tinha certeza se o rapaz realmente estivera ali ou se apenas tinha o criado de sua imaginação. E embora não o tenha encontrado mais, ela decidiu usar os óculos. Embora não fossem do mesmo grau que os dela, ela sentia como se através deles fosse possível ver o mundo de uma forma diferente, mais vibrante, mais vívida.

Por mais que não fosse totalmente verdade, ela estava sozinha agora. E isolada contra sua vontade, ela criava. Pois suas criações a faziam companhia. E num campo de flores ou num dormitório, novamente o rapaz de barba aparecia.
- Você está bem? – ele perguntou.
- Claro que estou – respondeu ela. – Você é o rapaz dos óculos, no aeroporto, não é?
- Aeroporto? Eu não uso óculos já faz um tempo.
- É você sim, eu me lembro. Aqui, eu guardei seus óculos – disse ela colocando as mãos no próprio rosto para retirar os óculos.
- Não – disse ele segurando suas mãos no rosto, impedindo-a – Estes são seus óculos agora. Você os criou, não percebe?
- Se eles não são de verdade, então isso significa que você também não é de verdade? Eu estou delirando? – perguntou ela segurando as mãos dele em seu colo.
- Não são de verdade? Não sou de verdade? – perguntou o rapaz, rindo.
- Eu criei você – não era uma pergunta.
- O que é a realidade, Mia? – perguntou o rapaz, depois de um tempo observando-a.
- É um mundo paralelo com a fantasia... não é? – disse ela, incerta.
- A realidade, Mia, é aquilo que você fizer dela. Nunca foram os materiais, as técnicas ou os sonhos. Foi sempre você.
- Mas... como isso é possível? – perguntou a garota apertando as mãos dele.
- Ora, e por que não seria?
- Eu... criei você triste – disse ela depois de um tempo, olhando para baixo.
- Eu pareço triste agora? – ele segurou seu queixo e ela levantou os olhos para seu rosto, que esboçava um sorriso e tinha olhos muito brilhantes.
- Tudo que eu já criei... ainda existe? Vive independente mesmo estando longe de mim?
- Apenas se você quiser, Mia. Apenas se você quiser.

E com o sol entrando pela janela, Mia despertou sozinha em seu quarto. Ela sentou-se na cama e pegou seus óculos grandes de lentes redondas, que estavam em cima do móvel ao seu lado, cuidadosamente dobrados. Levantou-se e foi para a cozinha, fez uma caneca de café e a trouxe para sua escrivaninha. Ela levantou a caneca para tomar o primeiro gole, mas no meio do caminho algo pegou sua atenção através da janela. Um brilho voando rápido, talvez um vaga-lume, ou uma fada. Ela cerrou os olhos procurando pelo brilho, mas o vapor do café embaçou seus óculos. Ela os limpou na blusa e olhou novamente, mas não encontrou nada no jardim lá fora. Respirou fundo por um momento. Ela sabia exatamente com quais tintas ela o iria encontrar novamente.

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