26 de agosto de 2018

Fuso Horário

Gênero: "Ficção"
"Já estávamos há duas horas naquele carro, e o tempo não passava. Era a quinta cidade que visitaríamos nessa viagem, e pra falar a verdade não era nem mesmo uma cidade."




Já estávamos há duas horas naquele carro, e o tempo não passava. Era a quinta cidade que visitaríamos nessa viagem, e pra falar a verdade não era nem mesmo uma cidade. Existia um pequeno vilarejo, de poucas pessoas, e ele ficava há trinta minutos de caminhada do casebre em que residia aquela senhorinha.
- Falta muito ainda, pai? - perguntei.
- Falta menos do que quando você perguntou há cinco minutos atrás - respondeu ele, me olhando pelo espelho retrovisor.
- ‎Ah, não é aquele o vilarejo? - perguntou Amanda, a namorada do meu pai.
- ‎E não é que já tamo chegando mesmo? - respondeu ele.
Então minha avó, no banco ao meu lado, retirou o celular da bolsa e começou a procurar um número entre os contatos.
Minha avó já tinha mais de oitenta anos e não era uma daquelas velhinhas descoladas que consegue lidar bem com tecnologia. Ela segurava seu celular como se cuidasse de um filhote de passarinho que caiu do ninho; com todo o cuidado e medo de apertar forte demais.
- Vó, deixa que eu te ajudo.
- ‎Ai, procura pra mim o telefone da Nina e aperta pra ligar?
- ‎Claro, vó... aqui, está chamando já - disse eu, devolvendo o celular para ela.
- ‎Obrigada, Tina.
Então ela começou a falar várias palavras difíceis em polonês no telefone.

Estávamos indo passar uns dias na casa de sua amiga, Nina. Ou talvez fosse prima, não me lembrava muito bem. Ja fazia um tempo desde a ultima vez que eu tinha vindo pra Polônia e visitado essa senhora.
- Ih, acho que vamos dormir apertados - disse a vó, guardando o celular na bolsa. - ela perguntou em quantos nós estávamos. Depois que eu disse "quatro" ela respondeu que estava esperando só três.
- ‎Mas você não avisou ela que dessa vez a Amanda vinha com a gente? - perguntou meu pai.
- ‎Avisei! Tá ficando velha já, a Nina.
- ‎Agora que ela tá ficando velha?! Ela não é mais velha que a senhora, vó? - perguntei.
- ‎Sim, uns dez anos mais velha.
Depois das risadas, nós finalmente chegamos no casebre da dona Nina, cujo nome não era Nina, mas era difícil de se pronunciar e por isso eu a conhecia apenas como dona Nina mesmo. Ela parecia agitada e estava arrumando a mesa para um café quando batemos à porta.
- Bem-vindo, bem-vindo - disse a senhora, e logo depois desatou a falar polonês com a minha avó. Do pouco que eu conhecia da língua,  pude entender apenas que minha avó pedia desculpas várias vezes. Desejei que ela não se desculpasse tanto pois afinal não era culpa dela.
- ‎Diz "obrigada pelo chá" pra ela, vó! - pedi.
- ‎Din cuie za rerbate - ela disse, ou pelo menos foi o que entendi.
Dona Nina esboçou um sorriso cansado, como de alguém que não se sente feliz há anos e nem sabe mais como sorrir. Era incrível imaginar como ela conseguia sobreviver ali sozinha, sem a ajuda de ninguém. Mas de um jeito ou de outro ela vivia, e mesmo fazendo as coisas de um jeito lento e cuidadoso, ela fez questão de tirar toda a louça e lavar tudo sozinha. De acordo com a vó, ela disse que "visita não lava louça".
Me lembro como ela fez tudo da última vez que viemos. Não quis deixar nem que arrumássemos o quarto - o que era uma pena, pois além de me sentir folgada, eu estava doida pra abrir todas as janelas da casa e adoraria fazer uma baita faxina. Por mais que a dona Nina cuidasse da casa, havia uma camada de pó não apenas nos móveis mas no próprio ar, e era tão grossa que quando eu andava pela casa me sentia como se estivesse em um planeta diferente, de tão densa que era a atmosfera. Até a gravidade parecia mais forte, e todo mundo fazia tudo num ritmo mais lento.

O casebre era simples: possuía uma pequena sala conjunta com a cozinha e dois quartos. O quarto dela tinha a porta sempre fechada, e o de hóspedes tinha uma cama de casal e outra de solteiro, apertadas ali. As paredes finas tinham rabiscos de giz apagados pelo tempo e a luz era tão fraca que em noites de lua cheia, abrir as cortinas era uma melhor opção. Mas nunca a janela, só a cortina.
Já o banheiro era lá fora, mesmo. Na parte de trás da casa.

Descarregamos o carro e levamos as malas pra dentro. Dona Nina estava preocupada se teria espaço suficiente, e minha avó tentava tranquilizá-la dizendo para não se preocupar que daríamos um jeito. Ela tinha um grande relógio na sala, daqueles antigos mas que não tem cuco. Um relógio redondo de parede, com números enferrujados que deveriam ter sido dourados um dia, e embora a hora estivesse correta, o ponteiro que marcava os segundos já não funcionava como o esperado.
Um fato curioso sobre o casebre da dona Nina, era que ele devia ficar bem na divisa do fuso horário. Meu celular ficava louco, pois quando tinha algum sinal ele atualizava o horário (fosse pra uma hora antes ou uma hora depois da "hora real", dependendo do seu ponto de vista), por isso eu sempre me baseava pelo grande relógio na sala.

Depois de nos acomodarmos, tomamos banho no banheiro lá fora - ainda bem que pelo menos a água era quente - e fomos jantar. Havia apenas três tigelas quando nos sentamos à mesa, então me levantei para procurar outras duas.  Quase trombei com dona Nina entrando pela porta dos fundos ao lado da pia, quando fui pegar uma tigela no escorredor de louça. Ela olhou assustada e eu disse "Sorry!", torcendo para que ela entendesse um pouco de inglês. Ela saiu resmungando e foi servir a sopa, fez sinal para que eu me sentasse à mesa e agora ela tinha no rosto um sorriso bondoso e gentil.
- Nossa vó, tá muito boa essa sopa. Diz pra dona Nina que gostamos muito - eu disse.
- "‎Zupa Cebulowa", sopa de cebola - respondeu a vó, traduzindo a resposta da dona Nina.
- ‎Ela não vai comer, não? - perguntou meu pai.
- ‎Ela disse que está sem fome porque comeu muito, mais cedo - a vó respondeu, e continuou a tomar sua zupa cebulowa.
Fomos nos deitar. Ali todo mundo dormia cedo, embora por vezes durante a madrugada eu escutasse a dona Nina saindo da casa e voltando após usar o banheiro. Sabia não pelo barulho de descarga, mas pelo barulhão que a porta do banheiro fazia de madrugada.
Nessa viagem eu ainda não havia conseguido ajustar meu horário de sono. Desde o jetlag do Brasil até a Europa, juntando as viagens de carro pra cima e pra baixo, eu realmente estava com uns horários meio doidos para dormir. E como eu havia dormido durante a tarde, no carro, ainda não conseguira dormir. Fosse pela falta de sono ou pelo ar abafado da casa que quase me impedia de respirar, de tão pesado, minha solução foi deixar uma garrafa d'agua ao meu lado para pelo menos manter a garganta hidratada.
Me virava de um lado para o outro no sofá. Quando foi mesmo a última vez que estive aqui? Me perguntava o motivo de ter dois quartos na casa e se um dia dona Nina tivera filhos, ou sequer um marido. As paredes do quarto eram finas como segredos contados na madrugada, e em meio aos roncos de meu pai, pude ouvir ela se levantar para ir até o banheiro. Fechei os olhos pra fingir que dormia, sem nem mesmo saber o motivo. Fosse por pensar em banheiro ou pelo fato de já ter tomado uma garrafinha d'água inteira, minha bexiga reclamou. Já haviam se passado 15 minutos e a dona Nina não havia retornado. Eu não aguentava mais e precisava fazer xixi, nem que fosse na moitinha ao lado do rio. Peguei meu celular para iluminar o caminho e fui, torcendo para que ela saísse do banheiro antes que eu chegasse lá. Mas quando abri a porta dos fundos, me deparei com uma cena diferente de tudo que já havia visto na vida.
Não era dona Nina de ceroulas retornando do banheiro. Parte de mim até queria que fosse. Aquilo era algo tão difícil de se explicar quanto era de se compreender. Na verdade não poderia dizer que compreendi, poderia apenas tentar descrever.
Se precisasse comparar com alguma coisa real, diria que era a aurora boreal. Um brilho no céu, que não parece natural, mas ao mesmo tempo você sabe que aquilo é normal, que faz sentido, entende? Mas eram vários brilhos, diferentes rastros e cores. Só que eles não estavam no céu. Eles se espalhavam pelo quintal de dona Nina, até a margem do rio. Nada após aquele trecho. Caminhei em direção à um deles, e era como se eu estivesse andando na lua, a sensação de gravidade era tão menor e o ar era difícil de respirar.  Ao mesmo tempo que me sentia leve, me movia devagar. Não havia mais vontade de fazer xixi, nem banheiro ou casebre, apenas os feixes de luz se espalhando em diferentes cores e tons. Quando cheguei perto o suficiente, pude ver que não eram feitos de luz: eram como grandes janelas com maçaneta, totalmente transparentes, pouco maiores que eu. A luz fugia pelos cantos dessas janelas, ou portas. Encostei a mão na porta mais próxima, e ela estava levemente quente. Eu via o mesmo rio do outro lado da porta, porém lá estava claro, de dia. Nesse momento um corvo chegou, do meio da noite, e o segui com os olhos até ele pousar atrás da porta. O mesmo corvo chegou no lado claro da porta, junto com vários outros. No chão eu vi corpos de pessoas, e soldados em meio a eles procurando por alguém. Tentei me afastar mas a imagem me prendia. Estiquei o pescoço para a lateral da porta para espiar e no meu mundo estava de noite, o corvo estava sozinho. Decidi tentar gravar aquilo, para ver se não estava ficando louca. Assim que olhei para o celular, não apenas a tela piscava, cheia de interferência, mas o horário mostrado mudava a cada segundo. Sempre para um horário aleatório, sem repetir a mesma hora. Eu simplesmente não conseguia entender o que estava acontecendo, até que algo me trouxe de volta do mundo dos pensamentos: um grande baque, uma forte batida de porta em um dos brilhos, uns cinco metros à minha direita. Olhei para o lado e vi a dona Nina se aproximando lentamente, com um sorriso no rosto. Ela não precisava falar a minha língua naquele momento, podia dizer sua intenção pelo seu olhar. E ela não estava brava ou preocupada, ela parecia nostálgica, como se estivesse se lembrando da primeira vez em que vira tudo aquilo. Suas roupas eram de uma época passada, um uniforme de enfermeira. E ela parecia tão jovem ao ter saído da porta! Mas em cada passo que ela dava em minha direção, seu rosto retomava as rugas e a idade, assim como seu corpo e seus cabelos.
Ela parou ao meu lado e colocou a mão sobre meu ombro, me abraçando de lado. Com a outra mão ela fez um movimento largo, como se estivesse mostrando seu quintal. Nesse momento dezenas de outros brilhos surgiram, um após o outro, e o rio pareceu se afastar. Parecia que eu estava dentro de uma constelação em miniatura, num universo infinito de estrelas tão brilhantes que poderiam me cegar se eu fechasse os olhos e os abrisse rápido demais. Era como se o tempo não existisse ali, tudo surgindo e morrendo em infinitos ciclos, eu era um com o universo e cada átomo em meu corpo era o próprio universo. Ela ergueu o braço mais uma vez e fez um movimento contrário, agora da direita para a esquerda, e os brilhos foram desaparecendo, um a um. Pouco antes de todos eles terem sumido, dona Nina me encarou, e com um último sorriso fraterno, levantou a mão na frente de meu rosto e estalou os dedos.

*plec*

Tudo escuro.
Vontade de fazer xixi.
"Nossa, que sonho louco eu tive agora. Foi tão real" - penso. Me levanto e vou até a porta dos fundos. Levo meu celular para iluminar o caminho. Abro a porta e vou até o banheiro. Faço xixi, volto para dentro da casa, me deito no sofá.
Além dos roncos do meu pai, também posso ouvir os roncos de dona Nina. Minha garrafa d'agua está vazia.

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